segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Carta para Josefa, minha avó do Sr. Saramago


"Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo – e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira – sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.
Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha.
Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-me tu, ou terei sonhado que o contavas?) Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém.
Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, umas coisas que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrijada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos – e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti – e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.
Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas – e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!”.
É isto que eu não entendo – mas a culpa não é tua."

José Saramago

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Chuva


Adoro dias assim.
Adoro chuva.
Nunca percebi porquê. Hoje sei. A chuva vem e lava as preocupações, deixa o pensar mais claro e limpo. Apaga a poeira e os limites e deixa-me sonhar livremente.
Transporta-me por aí, por onde quero, por todo o lado.
E o belo cantar da chuva enche os meus ouvidos por inteiro, abafa os ruídos, faz esquecer o que é a mais.
E no silêncio do que não interessa a alma fica leve e os cantos da boca elevam-se. O som da chuva faz-me sorrir por retirar o peso do excesso do dia-a-dia.
E a visão da água, das gotas enfileiradas, seguidas e rápidas faz-me sentir em casa. E os meus olhos misturam-se com as gotas pelo reconhecimento do lar.
E as cores são mais belas, mais intensas, mais puras. A luz ilumina de outro modo e o mundo deixa de ser uma impressão para ser algo mais concreto cuja contemplação se merece prolongar num tempo que não cansa.
Quando chove permito-me parar. Parar a olhar, a ouvir, a sentir.
A chuva deixa-me ser quem sou sem fronteiras, deixa-me abrir a janela, saltar dela e dançar em rodopios sem gravidade que me pare ou limite.
A chuva deixa-me sonhar sem culpa. 


quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Quando eu estiver triste não digas nada. Abraça-me.


Quando eu estiver triste não digas nada.
Abraça-me.

Nada dirás
Que já não tenha ouvido
De tantos outros
Nos filmes e nos livros
Da minha própria boca

Quando estou triste não suporto
O pensar apenas
Das palavras que já disse, pensei ou senti

Por isso se me vires triste nada digas, abraça-me só.

A tristeza enche-me de palavras
Que não consigo esquecer
Que recalco mas ressurgem
Que cansam.

Não me canses amigo quando triste me vires.
Dá-me um abraço.

E quando acordo no sufoco de um pesadelo,
De noite ou de dia,
Não há momento em que despreze mais as palavras,
Por isso envolve-me apenas nos teus braços.
Com força, para as ideias não se conseguirem mexer. 

domingo, 2 de setembro de 2012

Estrela-do-mar


Tão só…

Tímida e escondida
De sainha rodada
Bela e rosada
Mas tão só

E ao lado dela outras tantas
Dir-se-ia acompanhada
Corada e enamorada
Mas tão só

E no ritmo das ondas
No correr das marés
Vai dançando sem ter pés
Mas tão só

E se por acaso se aventura
Ou vive uma loucura
É mãe sem saber
E tão só
Dá vida sem conhecer
Por perder parte de si
E dança ainda assim
Mas tão só…

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Dança tribal


- Bom dia! Como estás?


Eles dançam lá fora… todos eles, homens, mulheres, crianças que nunca viu na vida mas que ama.
O ritmo faz os átomos vibrarem, os que constituem um corpo e a atmosfera que o envolve.
Junta a voz às outras vozes, à precursão e às cordas.
Lança-se pela janela de braços abertos recebendo o mundo e juntando-se à dança!

Pontas dos dedos de uma mão tocam gentilmente, suavemente, levemente os dedos de outra mão.
Não há nada. A mão esfuma-se, fica apenas a memória e um laço em torno do coração.

É imprecisa a recordação. A definição está tão próxima mas ao mesmo tempo é inalcançável. Por medo ou incapacidade. Mas é sabida, apenas não pode ser, ou não quer ser, expressa.
Este lugar é o certo, mas aquele também. Não estar em nenhum deles talvez seja melhor e mais cómodo. Correr para além deles é uma incógnita mas talvez o mais apetecido.

Esta música é feita de todos os sons e de tudo o que quer ouvir, mas falta o silêncio.
Calem-na! E nada fica, e o que quer vai.
Toquem-na e não a quer mais sentir.

Os olhos desta fotografia brilham e o sorriso e os gestos.
Mas uma bela fita de seda enlaça o coração da imagem.

Quer agora, quer dançar agora. Mas os pés descalços movem-se sós.
A música ouve-se mas a dança fugiu, vai ter de esperar que eles, os homens, as mulheres e as crianças que nunca viu voltem.
E amá-los-á a todos porque lhe vão desfazer o laço. Mas não agora.
Resta esperar e sorrir. Olhar o sol e ser feliz.
Ser quem ainda é mas não será e lamentar não poder ainda fazer do mundo uma tela e da dança um pincel. 

domingo, 17 de junho de 2012

Branco

Eu sabia que hoje tinha que escrever.
Durante a tarde, na hora de Domingo em que todos não fazem nada, abri a janela e deixei o sol entrar, fazendo brilhar a folha de papel branca e lisa sobre a minha secretária.
Olhei em redor... Música?
Chopin começou a tocar.
Sentei-me à secretária e escolhi uma caneta. A de tinta azul para um dia alegre. Uma caneta, o que escrever vai sair directo e à primeira. Hoje tenho os pensamentos claros e as ideias límpidas.
Encho um copo de água. Vidro sem cor, trespassado pela luz do Sol... Água clara e límpida.
Suspiro e olho a folha. O branco pulsa e enche-me os olhos, preenche-me a alma.
A folha cresce, estica-se alarga-se. Branca, cada vez mais branca.
Afundo-me nela enquanto ela me envolve.
Uma excitação miudinha que nasce algures no fundo do estômago desamarra-me o coração. O sangue corre  sem obstáculos fluído e rápido. Um formigueiro na ponta nos dedos, uma vontade nas pernas. Já não sou eu, sou um corpo livre, aos rodopios num campo branco e com todas as cores, sem formas e com todas as paisagens.
Olho para cima e é o céu que vejo de noite e de dia. E não há céu, é uma parede limpa à espera de ser preenchida.
Por mim passam todas as palavras e todas as metáforas... Um turbilhão de metáforas! De mágicas metáforas. E eu leio-as, mas estou de olhos fechados. E sei-as, mas estou a ver o sol... O nascer do sol, o sol no zénite. Estou deitada sobre a relva e sobre a areia e sobre um chão de alcatifa branca à espera de ser tingida.
Adormeço e sinto gotas de uma chuva tímida e fresca... Aguaceiros fortes!
Acordo com um sorriso nos lábios e um brilho nos olhos.
Vou buscar um pano, entornei o copo de água sobre a folha branca.
Hoje já não escrevo.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Sofá


O que fazer
Quando o sofá usado
E moldado ao corpo de tanto uso
(Quente e casa
Lar e aconchego)
Não está aqui?
Está no ontem ou no amanhã
Talvez…

Não que este sofá seja mau…
Mas não é o meu,
O moldado pelo meu corpo,
E cujos moldes moldaram os meus gestos

O ponto exato do mundo
Que construí e me construiu
Em escala igual
Em reciprocidade absoluta
Em dádivas mútuas que se anulam

O pondo zero do mundo
Onde não me tenho de agrilhoar
Onde posso esquecer
O que é tabu
E ser sem nada à volta.
Sinto falta de ser sem nada à volta.
Todos devíamos ser mais vezes sem nada à volta!
E lançarmo-nos mais vezes sobre o nosso sofá
Num mergulho gritante e livre
A preencher as covas do uso do sofá.
E devíamos enroscar-nos no sofá
E de lá recusar sair
E adormecer com um sorriso parvo no rosto.
Um sorriso só de felicidade, sem mais nada.
E cairmos num sono sem sonhos,
Dormir. Só dormir!
Sem nada à volta e no nosso sofá. 

quinta-feira, 22 de março de 2012

Saudade


Falta um pouquinho em mim
Um pouquinho tão pequeno que nem
Rebuscando tudo lhe sei pintar a face
Mas as roldanas movem-se a esforço
E a labuta é feita sem vontade

Um pouquinho…
E sou menos o que fui
E todos são menos o que foram

Um pouquinho e o tempo voa
As voltas dos ponteiros acumulam-se
E cada nova volta é mais um rodopio
Somado a esta dança sem lamentos
E sem música

Nem tonta,
Nem aqui,
Sem sorriso,
Sem lágrima

O olhar voltado para luz que aí vem
Para as escassas alvoradas
Que permitem o rodar das roldanas

Vão rodando, rodando…
Movidas só pelas manhãs

Falta um pouquinho
Cuja face não sei pintar
E as roldanas já não cantam enquanto rodam…

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

A raposa, feriados e férias

*
- O que é um ritual? - disse o principezinho.
- Também é uma coisa de que toda a gente se esqueceu - disse a raposa. - É o que torna um dia diferente dos outros dias e uma hora diferente das outras horas. Por exemplo, os meus caçadores têm um ritual. À quinta-feira. vão dançar com as raparigas da aldeia. Por isso, a quinta-feira é um dia maravilhoso. Eu posso ir passear às vinhas. Se os caçadores fossem dançar num dia qualquer, os dias eram todos iguais uns aos outros e eu nunca tinha férias.
                                                                            Antoine de Saint-Exupéry, O Principezinho

Ora, com o fim de quatro feriados, mais quatro dias ficam iguais aos outros e, somando 3 dias a estes quatro, a raposa também fica com muito menos tempo de férias.