sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Era uma vez… [Um poema infantil para adultos.]

I. Ogre
Estou aqui tão só.
Mas tão bem.

Quando não há ninguém por perto
No início
Bem… a verdade é que custa.
Mas
Depois
A gente habitua-se.

É fácil viver comigo.
Aqui tão só.
Mas tão bem. 

Sem ninguém que me chateie.
Sem ninguém que me corte os pensamentos quando fala.
Sem ninguém que me diga fizeste bem ou fizeste mal.

Eu já não sou só o meu corpo.
Sou o meu corpo mais o que está à volta.
O meu corpo mais a minha casa.
O meu corpo mais o meu jardim
E as flores nele
E a terra
Os insetos
E as árvores para lá da cerca do jardim
E o céu que vejo em todo lado…
Eu sou sem limite.
Até que alguém me resolva aborrecer
E eu tenha que guardar tudo o que sou
No meu corpo, como numa caixa.


II. Cebola
Mas se tiver que ser
Arrumo o infinito em mim
Como numa caixa
Camada a camada.

E se alguém quer saber quem sou
Ou julga saber quem sou
Não consigo dizer quem sou
Nem ninguém pode saber quem sou

Sou como uma cebola
Grande
Áspera
Com muitas camadas, infinitas camadas
E quanto mais a lâmina da curiosidade 
Perfura as camadas
Mais lágrimas, mais lágrimas…

Temam-me!

Esqueçam. Não é isso.

Essa, a camada que temem
É a superficial, a de cima.
As outras, todas elas, são secretas.
Ninguém vê, ninguém quer ver.
Não quero que ninguém veja.
Que sou mais,
Que sou diferente,
Que tenho em mim o infinito.

Ninguém vê. 
Ninguém quer ver.


III. Amigos
Até que alguém quer.

E porquê não sei 
Mas não incomoda
E porquê não sei
Mas até é bom

Porquê estes e não aqueles?
Porque estes querem saber.
Ou talvez porque não queiram. 

Gosto de quem quer saber
Sem querer saber.
Não quero saber! Está dito. 
Gosto.


IV. Princesa
(Uma outra voz)

Não quero espelhos.
Dói olhar-me.

Não sei quem sou,
O que sou…

Sou uma princesa.
Sem príncipe,
Sem castelo,
Sem fadas,
Sem conto.

Estrangeira de mim
À noite
Não sei quem sou
O que sou

Por isso aqui
Por isso só
Por isso sem pai ou mãe
Sem rei ou rainha
Não sei quem sou
Não sou princesa

Não quero espelhos, já disse que dói olhar.
E agora ele…
É como olhá-la, olhar-me
Na noite, agora também no dia
Sempre recordada de quem sou.

Ele é quem sou?


V. Amor
Quiseste saber.

(Uma outra voz)
Não dói olhar o espelho.

Fizeste-me não querer estar só.

(Uma outra voz)
Fizeste-me saber quem sou. 


VI. Estranho
Meti-me numa caixa? 
Não. Ela meteu-me numa caixa.

Mas se nessa caixa apenas estivesse eu
Com ela

Não estranhos
Não casas estranhas
Rostos estranhos
Hábitos estranhos
Coisas estranhas
Tudo estranho

(Um grito)

Eu sou o estranho.
Olhos em mim como um estranho.
Palavras sobre mim como um estranho.

Não sou de cá, não sou daqui
Não estou em mim, não sei de mim

QUERO FUGIR! IR EMBORA!

É melhor para ela. 
É melhor para todos.
Um erro depois outro
Que pensei? Não pensei.
Um monstro não merece…
O que me atrevi a merecer.

(Uma outra voz)
Fica.
Eu fico.
O meu lugar é em ti, o teu é em mim.
No que te quero
No que te sinto
Cabe em mim o infinito. 


VII. Herói
Tudo esqueço
Tudo tão pequeno
Tudo tão nada de nada
Agora que me vejo
Nos vejo
Nestes olhinhos pequeninos
Neles estão o infinito
Neles estou eu
Neles estás tu
E nós
E tudo o que é belo

Tudo o que fomos e importou, 
Tudo o que somos
O que seremos

E abraço estas crianças
Como quem se agarra a um sonho bom
Quando não quer acordar, para que ele não acabe

Somos heróis.
Vencemos. 

De que vale pensar
De que vale a angústia
As dúvidas
As tristezas e os desesperos
Tudo o que vale a pena está aqui.
Tudo o mais é em vão.
Até um monstro pode ser herói…

Tudo o que há ou vai haver
Tudo o que importa
Está aqui
Nestes olhinhos
Nestas crianças que abraço
Num aconchego que não quero que acabe
Num não sei que sentir é
Mas que é mais do que amor
Mas que direi que é amor
Já que falta uma palavra melhor.
É amor. 

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